Colóquio: censura e tradução

  

 

    


ESTUDO DE UM CASO: 


A... RESPEITOSA

de Jean-Paul Sartre

 

Pela Companhia Maria Della Costa

 

 

 

 

 

 

 

Judite Lopes

27 de Novembro de 2006

 

 

 


 

"Cada um de nós coloca, ao escrever, 

um censor imaginário sobre a mesa de trabalho"[1]

 

 

 

 

 

 

 

AGRADECIMENTOS

Maria Della Costa

Arquivo Miroel Silveira

Professora Maria João Brilhante

 

Introdução:

A primeira vez que me deparei com o espectáculo “A... Respeitosa”, de Jean-Paul Sartre, consultava eu o jornal Litoral, para a minha tese de mestrado sobre o Teatro Aveirense. A edição de 8 de Junho de 1957 trazia um anúncio de uma peça de Jean-Paul Sartre. Sabendo eu que este era um dos autores banidos pela Censura portuguesa, fiquei um pouco surpreendida uma vez que, nos arquivos do próprio teatro, nunca tinha encontrado qualquer referência ao mesmo: nem programa, nem resquícios de correspondência entre a direcção e a companhia brasileira responsável por tal. Na verdade, dos vários jornais que então se editavam em Aveiro, só O Litoral se referiu a este espectáculo em duas ocasiões: a primeira foi para o anunciar, a segunda para o anular. 

A edição de 22 de Junho de 1957, sob o título “Uma peça proibida” ataca de uma forma bastante contundente, a proibição de se representar a peça em Aveiro, Coimbra e Porto, após alguns dias de sucesso em Lisboa. Citando o Jornal de Notícias de 14 desse mês, o referido jornal aveirense esclarece que a proibição se prende única e exclusivamente com o facto de terem considerado as plateias destas três cidades destituídas de maioridade cultural e moral para assistirem ao espectáculo. Não conhecendo o texto de Sartre, o jornalista prefere citar o seu colega portuense, o crítico Ramos de Almeida, uma vez que não encontra fundamentação no parecer apresentado pela entidade censória. A opinião destes dois profissionais não diverge muito, uma vez que também ele não encontra justificação para se anular um espectáculo de uma companhia estrangeira, sem fins comerciais, “apenas para fazer e mostrar bom teatro, como infelizmente não se deixa representar em Portugal”. E vai mais longe na sua crítica apelando a que se acabe com as barreiras alfandegárias da cultura, de modo a que Portugal se possa considerar um país igual aos outros países cultos, civilizados e livres do Mundo. Na sua opinião, o público do Porto, é um “burgo de cidadãos que se vangloriam de ser os mais livres de Portugal. Coimbra é a nossa cidade universitária... e Aveiro, cheia de tradições e bafejada pelo surto progressivo do país, já tem o mesmo público – como é óbvio mais reduzido – de Lisboa, para compreender sem se corromper, a peça de Sartre.” (...) No entanto, a decisão estava tomada e, por mais lamentos que surgissem na imprensa local, a entidade censória não levantaria a sua proibição.

Depois de ter lido estes artigos no jornal Litoral e no Jornal de Notícias, resolvi procurar a razão de tal atitude. O que teria de especial este texto para que estivesse vedado ao público da província? Quem teria razão? Os jornalistas? Os censores que emitiram tal parecer? 

O passo seguinte foi procurar tudo o que dizia respeito a esta polémica. Comecei por confirmar que nos arquivos do Teatro Aveirense nada consta sobre este espectáculo. Se houve alguma correspondência, e deve ter havido uma vez que o jornal aveirense a isso alude, a mesma desapareceu. A ida à Torre do Tombo foi mais profícua: além do texto com as indicações dos cortes a efectuar, há também outros documentos elucidativos do percurso da peça em Portugal. Fica-se, assim, a saber que a peça só foi autorizada por determinação exclusiva do então Presidente da Comissão de Censura, e contrariamente à sentença dos outros censores, como veremos mais adiante. Por outro lado, nada consta sobre a proibição de itinerância, havendo apenas umas pequenas referências na imprensa diária. O que é certo, é que a peça foi proibida, de tal modo que, dois anos depois, Vasco Morgado tenta levantar a sua proibição, procurando que ela fosse representada numa homenagem a Laura Alves. No entanto, o texto mantém-se no grupo dos não autorizados, apesar de no processo 5345 constar a seguinte nota manuscrita “o caso social que ali se levanta até nos pode ser vantajoso mostrar para comparação do nosso [Governo] ponto de vista” (...).

Vejamos, então, como tudo começou.

           

2 - Breve História da Censura Teatral em Portugal:

Podemos dizer que a censura teatral em Portugal é tão velha quanto o próprio teatro. As notícias mais recuadas acerca de manifestações teatrais em Portugal dizem respeito a medidas proibitivas, a partir do século XIII. É, todavia, a partir do século XVI, com a Inquisição e a criação do primeiro Índex, que os Governantes portugueses procurarão controlar tudo o que se representava no país.

Um dos primeiros a sofrer esta acção foi Gil Vicente, que, por coincidência, desapareceu no ano da criação do Santo Ofício da Inquisição - 1536. O Index Librorum Prohibitorum, de 1551, incluía já sete obras suas. O índex de 1581 proibia o recurso a personagens de origem eclesiástica, bem como a crítica à igreja, uma clara tentativa de calar o primeiro grande dramaturgo nacional. O mesmo veio a acontecer, em 1586, a Luís Vicente que, ao tentar editar pela segunda vez, as obras completas do seu pai, viu novamente a intervenção da Censura Inquisitorial impedir a publicação de alguns autos.

Posteriormente, um outro dramaturgo português lesado pela censura foi António José da Silva, que, em 1726, foi preso e torturado devido às suspeitas de ser Judeu. Anos depois, seria mesmo condenado, acabando por ser degolado e queimado na fogueira num Auto de Fé, que decorreu em Outubro de 1739.

Nos séculos XIX e XX a tendência foi para um intercalar de momentos de censura com momentos de liberdade de imprensa. Em 1822, com o Liberalismo, deu-se uma pequena abertura, tendo sido abolido o Tribunal do Santo Ofício. Foi também consagrado na lei o direito à liberdade de expressão, estando, contudo, previsto que os abusos seriam sancionados. Em 1836, Almeida Garrett foi chamado a criar um teatro nacional, acabando, assim, com séculos de atraso em relação a outros países. Tudo isto foi, “sol de pouca dura”. Sousa Bastos, em 1890, lamentava-se nas páginas do seu periódico Tim Tim por Tim Tim, desta situação, uma vez que, nessa altura, o tipo de censura que se fazia era pior do que a de antigamente:

 

Outr’ora atacava-se a liberdade, dizendo-se às empresas teatrais: 

- Não ensaie a peça.

Agora faz-se muito pior. Deixa-se perder o tempo ensaiando qualquer obra teatral, deixa-se fazer com ela enormes despesas e, à última da hora, na véspera do dia em que deva ser representada, diz-se:

- A peça está proibida! (Tim tim, por tim tim, 2 de Março, de 1890)

 

 

No século XX, e antes do Estado Novo, houve censura logo após a implantação da República, com o encerramento de diversos jornais pró-monárquicos e/ou católicos, bem como durante a Primeira Guerra Mundial.

Com a chegada do Estado Novo tudo se alterou. Para pior... A lei 13-564, de 1927, veio dar poderes aos inspectores teatrais para supervisionarem os espectáculos e reprimirem o que pretensamente ofendesse a lei, a moral e os bons costumes. Em 1933, mais um retrocesso: a Constituição da República previa a censura como forma de governo, além da censura prévia às publicações periódicas. De acordo com o próprio Salazar, tal justificava-se por: “Politicamente só existe o que o público sabe que existe[2]”. Deste modo, o Governo permitia-se escolher e adulterar a informação a que os portugueses teriam direito, através das Comissões de Censura. Posteriormente, estas comissões passaram a estar na dependência do SNI (1945). A situação tornar-se-á, contudo, insustentável. Um dos muitos que se lamentam de tal acto é Rogério Paulo, nas páginas do República, de 12 de Outubro de 1957, ao propor-se como candidato a deputado da lista oposicionista, por Lisboa. Diz ele que “sem liberdade de pensamento não há criação artística (…) Não são meia dúzia de funcionários, na sua generalidade mal apetrechados para acompanhar uma evolução estética universal, que se podem arvorar em dissecadores do produto de mentalidades esclarecidas e de pensadores autênticos.” 

A substituição de Salazar por Marcello Caetano, contrariamente ao esperado, não trouxe nada de novo. Eufemisticamente em vez de “censura prévia” passou a designar-se “Exame Prévio”, e em vez de dizer-se que uma peça estava “Proibida”, dizia-se “Não vai a cena”.

Só a Constituição da República de 1976 é que voltou a consagrar a “liberdade de expressão e informação” e a “liberdade de imprensa”, nos artigos 37º e 38º respectivamente.

 

3 – Situação do Teatro em Portugal, durante o Estado Novo:

Durante o regime salazarista, o teatro em Portugal viveu uma das suas piores fases. A maior parte das salas de espectáculos do país só conseguiam sobreviver se estivessem adaptadas ao cinema, e mesmo assim com algumas dificuldades. Em 1949, José Gamboa dizia no seu livro De Teatro  que “desde há trinta anos para cá, pelo menos, não se sabe em Portugal o que é Teatro – inclusive a maior parte dos artistas” (pág. 187). Esta situação, segundo este autor, é incompreensível, uma vez que, a maior parte dos países europeus enfrentou uma Guerra Mundial: 

 

Em Espanha (...) uma companhia de Teatro pode andar em excursão pela província dois, três e quatro anos, à espera de ter Teatro livre em Madrid ou Barcelona (...).

Paris tem 70 ou 80 teatros, Londres e Nova Iorque 40 ou 50, sem contar com muitíssimos dispersos pelos seus bairros excêntricos, e assim Roma, Berlim, Milão... e até Madrid – com uma área, quantidade de habitantes, níveis económico e cultural sensivelmente aproximados do nosso – possui em permanente funcionamento 20 teatros! (pág. 185) 

 

           

Recorrendo à consulta dos periódicos da capital, podemos comprovar que, por exemplo, a 30 de Junho de 1957[3], funcionavam 26 cinemas e apenas dois teatros em Lisboa. A actividade teatral era, nos anos cinquenta, quase toda concentrada na capital. Fora dela e do Porto, pouco mais havia. Quase todas as salas estavam adaptadas ao cinema e era assim que os empresários sobreviviam.  

 

Um dos problemas apontados era a enorme burocracia que o Estado impunha aos empresários de teatro, bem como a falta de apoio. Além disso, os encargos com a segurança eram enormes sendo normal haver mais polícias e bombeiros numa sala de espectáculos, do que em todas as ruas lisboetas. Os empresários teatrais eram autênticos comerciantes a quem interessava mais o lucro do que a qualidade do espectáculo oferecido.

A crise económica do país e a discutível qualidade dos espectáculos, condicionava a afluência regular do público. O único género que atraía um maior número de assistentes era a revista que funcionava como “escape” a todo o marasmo teatral. Apesar de não ser muito do agrado do governo, ainda se ia mantendo. Se fosse proibida, o público, provavelmente, não aceitaria de bom grado tal decisão, pelo que, actores e autores, subtil e indirectamente, diziam o que queriam, e toda a gente percebia o que se queria dizer… excepto os censores.

 

Foram, no entanto, feitas algumas tentativas esporádicas de renovação. Foi assim, em 1936, com a criação do Teatro do Povo, uma companhia fortemente apoiada pelo SPN - Secretariado de Propaganda Nacional -, mas, imediatamente, se compreendeu que não pretendia seguir o seu modelo inspirador: o Teatro Popular Francês. A finalidade do seu criador, António Ferro, era, única e exclusivamente, a propaganda do Estado, mais do que civilizar a população. Não esqueçamos que o lema de Salazar e seus apoiantes era “a ignorância é a maior felicidade do Povo[4]”. 

Posteriormente, foram criados alguns concursos de peças de teatro para a Mocidade Portuguesa e organizados torneios literários, que visavam a criação de um reportório cujo ideal servisse de complemento à educação da população. Isto aconteceu em 1942, 43, 47 e 48. Tudo o que era simples e rural era, então, valorizado em detrimento do citadino. Só assim se compreende que revistas locais, apresentadas por amadores, com muita inexperiência à mistura, conseguissem esgotar salas como o Coliseu de Lisboa. Ou numa cidade de província, como era Aveiro, se preferisse ver os actores da terra ou os itinerantes que animavam as feiras, encontrando-se, muitas vezes, as companhias profissionais com algumas dificuldades para cobrirem as despesas. 

A partir de 1945, e com a derrota do fascismo no final da Segunda Guerra Mundial, a situação alterou-se ligeiramente. Salazar prometeu eleições livres (?) e a censura suavizou a sua acção fiscalizadora. São criados alguns grupos de teatro, como o Teatro Estúdio do Salitre e os Comediantes de Lisboa. O próprio Teatro do Povo sofrerá, em 1952, uma renovação. Um bom relacionamento entre o Estado Português e a Embaixada do Brasil, proporcionou um vantajoso intercâmbio entre os dois países, ao nível teatral. Por essa altura, várias companhias cruzaram o Atlântico, em ambos os sentidos, o que permitiu que o público lusitano visse autores que os portugueses jamais teriam autorização para representar (caso de Brecht, Jean-Paul Sartre, Tenesse Williams, Arthur Miller e Peter Weiss). Foi também possível  contactar com autores do teatro moderno brasileiro, ainda que de uma forma muito ténue.

 

4 – A Companhia:

O Teatro Popular de Arte - considerada a primeira companhia teatral moderna estável no Brasil - era uma referência a nível mundial, pois, desde a sua estreia, a 2 de Abril de 1948, que vinha encenando peças que propunham ao público questionamentos e reflexões, numa clara modernização do teatro brasileiro. O nome escolhido, Teatro Popular de Arte, queria dizer isso mesmo: a arte que professavam (Teatro), a quem se dirigiam (Popular) e a sua opção ético-estético(de Arte, em contraposição ao panorama meramente comercial da época). Em 1955 adoptam o nome da actriz principal, passando a chamar-se Teatro Maria Della Costa, e é, dessa forma, que chegam a Portugal.

Curiosamente, a primeira peça desta companhia tinha sido, inicialmente, proibida pela censura brasileira. Anjo Negro, de Nelson Rodrigues, retratava um casal rico - ele preto, ela branca - , que não conseguia superar o racismo e, por tal motivo, com a cumplicidade do marido, a mãe foi matando os filhos, à medida que estes iam nascendo. O acolhimento por parte do público não foi dos melhores, pois o texto provocou muita polémica e uma exacerbada rejeição. Nesse mesmo ano, outras encenações não deixaram de levantar algum alvoroço, devido à sua ousadia. Uma delas prendeu-se com o texto do francês Jean-Paul Sartre cuja tradução integral do título não foi autorizada. Assim, o cartaz publicitário de A Prostituta Respeitosa, para não “chocar” os leitores, recebeu umas pudicas reticências, apesar de, umas linhas mais abaixo, constar o título em francês. Não obstante o tema controverso, como veremos mais adiante, foi um sucesso, tendo a peça sido, ao longo dos anos, sucessivamente reposta em cena. 

Como Maria Della Costa tinha frequentado o primeiro ano do Conservatório de Lisboa, de 1945 a 1946, é natural que este fosse o primeiro país para a internacionalização do grupo. A passagem por Portugal não se limitou a Lisboa, uma vez que o grupo ainda conseguiu actuar noutros palcos do país. E em mais se propunha actuar, não tivesse sido impedida. É que as suas peças não eram do agrado do regime, pelo que, das duas vezes que se instalaram em Portugal (1956-57 e 1959-60), a PIDE não lhes deu descanso.

O pior ano foi 1960. Segundo disse a própria Gentile Maria Marchioro, nome de baptismo de Maria Della Costa, numa entrevista dada ao número 33 de uma Revista Cultural, de Abril de 2002, citada pelo sítio http://teatrochik.terra.com.br/entrevistas

 

[Em 1960] fomos expulsos de Portugal e impedidos de apresentar nossas peças. Ficamos sem dinheiro e não podíamos ir para Paris, apresentar Gimba, porque não podíamos comprar as passagens. Eram 40 atores. Ficamos um mês em Portugal, indo ao aeroporto, para ver se encontrávamos algum brasileiro disposto a ajudar. Até que encontramos o jovem Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul e explicamos a situação para ele. Mais tarde recebemos o telefonema de um banco avisando que conseguíramos as passagens.

 

 

Tudo começou com a apresentação da peça A alma boa de Setsuan, de Bertol Brecht. Aquando da estreia, a companhia foi avisada que a polícia iria entrar no teatro e causar tumultos, de modo a intimidar toda a gente. Sandro Polloni, o produtor, que tinha alguns amigos em Coimbra, pediu apoio aos estudantes, oferecendo-lhes o andar de cima da sala de espectáculos. O Teatro Capitólio, nesse dia e nos outros, esgotou. Até que a Acção Católica, da direita, juntamente com polícias à paisana começou a provocar distúrbios no Teatro e, quando os actores  tentavam representar, eram impedidos com gritos “Fora com os comunistas”, entre outras frases. No entanto, o público, em geral, pedia silêncio e até o cônsul e os diplomatas brasileiros tiveram de intervir. Como não havia condições para concluir o espectáculo, Sandro, fingiu-se desmaiado pelo que, pensando que o mesmo tinha morrido, os amotinadores guardaram os lenços brancos, acabando com os protestos. O espectáculo terminou perto das 4 horas da manhã. Contudo, a polícia cercou o teatro e impediu que os actores brasileiros abandonassem o mesmo. Na base desta decisão estava o Regulamento dos Teatros e de Todas as outras Casas de Espectáculos (decreto nº 13-564, de 6 de Maio de 1927), onde se dava poderes à polícia para reprimir “motins ou quaisquer actos que prejudiquem a normal realização dos espectáculos e a tranquilidade dos espectadores, podendo, se tanto for mester, ordenar a suspensão do espectáculo". Estava assim justificada a interdição de encenações que, só depois de estreadas é que se revelavam incómodas para o Governo. Voltando ao caso concreto desta peça de Brecht, posteriormente, um juiz decretou a proibição da mesma mas os actores fizeram greve à porta do teatro, aos quais se juntou um grupo grande de comunistas. Perante esta situação, a Companhia Brasileira foi expulsa de Portugal, tendo 24 horas para abandonar o país. Porém, havia que ir a França actuar, num festival de teatro, em Paris. Para apaziguar a situação, e com a colaboração do embaixador Brasileiro, foi feita uma proposta: Maria Della Costa responderia a um inquérito. Como as perguntas e as respostas já estavam feitas, a actriz recusou. No final, conseguiram a tão necessitada autorização, sob a condição de nada contarem sobre o que se tinha passado. As ameaças foram tantas que, temendo pela própria vida, nada disseram. Como recorda a actriz no sítio referido:  

 

Ficamos indignados, mas fomos obrigados a aceitar a condição pois o navio Vera Cruz, que nos levara e que também nos traria de volta ao Brasil, partia de Lisboa. Caso revelássemos o incidente, teríamos nossa entrada barrada em solo português. 

 

Na imprensa, só o periódico República, de 13 de Março de 1960 é que dedicou seis linhas a este assunto, preferindo fazer a análise do espectáculo em si. Para o periodista foram apenas “três ou quatro espectadores” que, no início do espectáculo, se manifestaram ruidosamente contra o autor da peça, mas que a polícia reduziu ao silêncio.

 

5 - O texto de Sartre:

La putain respectuese é uma pequena peça de Jean Paul Sartre, escrita em 1946, que narra a história de uma prostituta americana que, ao mudar-se para Nova Iorque, e viajando numa carruagem com mais dois passageiros de raça negra, se vê envolvida num tiroteio do qual resulta a morte de um deles. O enredo desenvolve-se já na casa de Lizzie, onde um dos seus clientes a tenta convencer que tem de depor a favor do homem branco, uma vez que a vida deste é mais útil à sociedade que a do preto.

Após algumas hesitações e dúvidas, Lizzie acaba por se deixar levar pela conversa dos brancos, alterando a sua vontade inicial de só contar a verdade.

 

Um olhar atento sobre o processo 1545, permite-nos ver que a peça teve dois momentos de intervenção, feitos pelos fiscais: um foi assinalado a azul e outro a vermelho. Pela leitura do relatório da Comissão de Censura, podemos verificar que só um dos cinco censores não era contra esta representação, apenas pedia que se cumprissem os cortes assinalados. Segundo ele, a versão cinematográfica – mais acessível ao público e a um maior número de pessoas – já tinha sido autorizada e, apesar de o autor se considerar comunista conforme lhe convinha, o texto não tratava de nenhum problema de ordem marxista. Por focar problemas de ordem racista, o censor, de assinatura ilegível, como era normal, considerava que até podia ser útil “como resposta ao falso anti-colonialismo “Yankee” que procura atingir-nos no nosso império (...)”. Assinalando a azul o que lhe pareceu diferente do original, advertia os actores brasileiros: “Convinha chamar a atenção da Companhia para as frases marcadas a azul, que se não encontram no original francês. São pura invenção do tradutor brasileiro que, mais gravemente, omitiu algumas expressões, também indicadas a azul e que me parecem necessárias para o entendimento da peça”. No final, o seu relatório diz para se aprovar, desde que se façam os cortes indicados a vermelho, em diversas páginas (18, num total de 46).

No entanto, os outros censores discordavam, alegando os seguintes motivos:

- “A peça é mais áspera do que o filme... [sendo] mais pornográfica;

- [A peça]  atingirá a sensibilidade moral das nossas plateias; 

- Inconveniente, do ponto de vista moral e político;

- [O]  aspecto predominante é a prostituta, o seu meio, os dessous da profissão, os seus clientes, e, conduzindo a acção, num diálogo cru e chocante, todo impregnado de um clima de casa de passe.”

Apesar destas opiniões, a peça acaba por ser autorizada por decisão do então presidente da Comissão. Se houve incidentes durante a sua representação, em Lisboa, não há registos, uma vez que a imprensa mal se pronunciou sobre ela. Os jornais da capital quase não a publicitaram, limitando-se, o República a uma ou duas linhas na secção relativa ao cartaz para esse dia. Por outro lado, O Primeiro de Janeiro, de 12 de Junho de 1957, anunciava em letras bem grandes, que, quem fosse a Lisboa, não deixasse de ir ver a peça. Neste caso, como em tantos outros, a publicidade “boca-a-boca” fez com que a peça estivesse em Lisboa mais tempo do que o previsto, compensado, de certa forma, a sua não digressão.

Quanto ao tipo de censura que foi feito, podemos afirmar que a peça A...Respeitosa teve duas censuras: a preventiva (com cortes prévios ao texto) e a repressiva (o se ter proibido a sua itinerância).

É de referir que o texto também foi alvo da censura Brasileira, ainda que de uma forma não tão agressiva. De acordo com o sítio http://www.eca.usp.br/censuraemcena, que trata do arquivo de Miroel Silveira, podemos verificar que este texto foi censurado cinco vezes: 27/01/1954, 17/04/1957, 11/04/1962, 22/10/1962 e a 11/04/1966. De acordo com o responsável pelo arquivo, a censura brasileira limitou-se a classificar a peça para maiores de 18 anos, não cortando qualquer palavra ou réplica. Os únicos que intervieram no texto foram os censores portugueses, criticando até o trabalho do tradutor por este não ter traduzido tudo. 

Vejamos, então, quais as intervenções que os censores fizeram neste texto:

®1ª intervenção = reposição do texto original[5]: (lápis azul)


                                VER QUADROS NA PUBLICAÇÃO SEGUINTE

 

        ®2ª intervenção = censura por também não constar do texto original: (cortes a azul)

 

                               VER QUADROS NA PUBLICAÇÃO SEGUINTE

 

Quanto à acção da censura, podemos verificar que os censores não se limitavam a ler o texto que ia ser apresentado; neste caso, houve também a preocupação de confirmar se a tradução estava ou não de acordo com o original. O facto de o tradutor, ter omitido certas palavras e/ou expressões não sabemos se foi propositado. O mais certo é que tivesse procurado evitar advertências posteriores fazendo ele próprio auto-censura. Tal como dizia Ferreira de Castro, em 17 de Novembro de 1945, no Diário de Lisboa: "Cada um de nós coloca, ao escrever, um censor imaginário sobre a mesa de trabalho". Em A... Respeitosa, o censor encarregou-se de suprimir do texto todas as referências susceptíveis de prejudicarem a boa reputação de um cidadão ou cidadã, não fosse o público mais púdico ficar chocado com a “crueza da linguagem... e das imagens”.

 

       ®3ª intervenção = censura por não ser do agrado do censor; cortes a vermelho:

                        VER QUADROS NA PUBLICAÇÃO SEGUINTE


6 - Conclusão:

E foi assim, em parte mutilada, que esta peça se apresentou aos lisboetas. 

Após uma análise detalhada das três versões – a original francesa, a do tradutor brasileiro e a permitida pela censura – procurei, então, responder às questões que tinha formulado no início de todo este percurso: “O que teria de especial este texto para que estivesse vedado ao público da província? Quem teria razão? Os jornalistas? Os censores que emitiram tal parecer?” 

Como devem calcular, não cheguei a grandes conclusões, uma vez que o texto, depois de ter sido tão decepado e de lhe terem amputado as réplicas que poderiam ser mais chocantes, nada tinha de especial, e era facilmente entendido por todos.

 Então, porque razão não pôde a companhia ir em digressão pelo norte do país? Torna-se difícil saber o que ia na cabeça dos censores mas não podemos esquecer que este era um autor comunista. Por tal motivo, a sua obra não podia circular, estando interdito qualquer texto escrito por ele[6]. Quanto menos pessoas tivessem acesso às suas ideias, melhor. É que o seu carácter existencialista, subversivo ou revolucionário não agradava de todo aos censores e muito menos este texto, onde se punham em causa os valores morais que o salazarismo tanto defendia,  nomeadamente os que diziam respeito às relações homem-mulher, família, linguagem e religião. E, tanto Aveiro como Coimbra, eram cidades onde as ideias progressistas proliferavam, para descontentamento do Governo. 

Contudo, não podemos esquecer que os censores se limitavam a cumprir ordens, pelo que não lhes podemos, de todo, atribuir as culpas do que então se passava. Como é sabido, Salazar não gostava de multidões e, sendo o teatro um local privilegiado de convívio social, era também grande a animosidade do chefe de Estado para com qualquer representação teatral. Daí ter sido reduzido a uma arte menor. 

No entanto, graças à “teimosia” de muitos, em “remar contra a maré”, o teatro foi encontrando formas de sobrevivência. Felizmente, quarenta e oito anos de ditadura não foram suficientes para o aniquilar.

 

7 - Referências bibliográficas:

·      AZEVEDO, Cândido de, A Censura de Salazar e Marcelo Caetano, Lisboa, Caminho, 1999

·      AZEVEDO, Cândido de, Mutiladas e Proibidas, Lisboa, Caminho, 1997

·      CARREIRA, Laureano, O Teatro e a Censura em Portugal na segunda metade do Século XVIII, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988 

·      FERREIRA, Costa, Uma casa com janelas para dentro, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985, 

·      GAMBOA, José, A propósito de Teatro, Edição de Autor, 1949

·      MARX, Warde, Maria Della Costa, seu teatro, sua vida, São Paulo, Cultura, 2004

·      REBELLO, Luís Francisco, Dicionário do Teatro Português, Lisboa, Prelo, s.d.

·      RODRIGUES, Graça Almeida, Breve História da censura literária em Portugal, Biblioteca Breve, 1980

·      SANTOS, Graça dos, O Espectáculo Desvirtuado, Lisboa, Caminho, 2004

·      SARTRE, Jean-Paul, Théatre, Librairie Gallimard, 1947



[1] Ferreira de Castro em entrevista ao Diário de Lisboa, de 17 de Novembro de 1945

[2] 26 de Outubro de 1933, aquando da inauguração do SPN

[3] Data em que A respeitosa terminou a sua “carreira” em Portugal.

[4] Costa Ferreira, obra citada, pág. 39

[5] Acrescentado de uma forma manuscrita.

[6] Caso de Le Diable et le Bon DieuLe murLes Mains Sales

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