As notícias da imprensa

Sendo a imprensa um veículo de informação por excelência do que se passava pelo país e numa época de poucos meios de comunicação, Aveiro tinha acesso a várias publicações desde o século XIX. Com maior ou menor longevidade, são, por vezes, os únicos vestígios do dinamismo teatral das populações, numa altura em que as idas ao teatro, mais do que um momento de entretenimento, era um autêntico fenómeno social:

A sociedade do teatro declara aqueles senhores que o ignoram, que ela nada embolsa do produto das récitas. O seu fim é unicamente sustentar em Aveiro este pequeno teatro e tirar dali alguma instrução. E por isso pede por muito obséquio aquelas pessoas que tem por costume, logo que entram no teatro, começarem a dar pateada, que sejam mais moderadas; por que, algumas famílias há, que deixam de ir ao teatro por causa destes e outros abusos ali praticados; o que não só reverte prejuízos  para a sociedade, mas também desacredita a terra. [Distrito de Aveiro, 13 e 17.12.1864]

É nela que se baseia grande parte desta pesquisa, nomeadamente a referente aos princípios dos teatros dos amadores aveirenses. Infelizmente, nem todos os espectáculos foram recenseados pelos periodistas, ou por não terem despertado interesse maior ou por razões editoriais. A imprensa oitocentista (e parte da novecentista) seguia claramente uma facção partidária, utilizando, as suas páginas para atacar outras forças políticas, sendo, por isso, muito facciosa. E este é o maior problema, sobretudo no que diz respeito aos cadastro e à critica de espectáculos, nomeadamente quando não há outros modos de contraponto. 
Lendo atentamente alguns periódicos, é possível verificar uma das seguintes situações:
a)                    Se a Direcção que estivesse à frente do Teatro não fosse do agrado ou da cor política do jornal, é certo que a apreciação seria negativa. 
b)                    Se a Direcção fosse do agrado desse jornal, então as notícias só trariam louvores pelo bom desempenho dos mesmos e desculpas por alguma inevitável falha.

Além dos jornais da terra, também se liam muito os do Porto e do Norte, em geral. Como referido, este facto era tido em conta, no que dizia respeito à publicidade e à crítica aos que vinham de fora. É que os da terra, como vimos, eram, logo à partida, bem acolhidos: 

Veio a Aveiro a empresa Ester Leão-Alexandre de Azevedo. Representaram bem e levaram duas belas peças. No segundo dia sábado não havia na plateia mais do que sem exagero, três dúzias de pessoas.
Num dos intervalos, um sujeito que passava junto de mim, já dizia: “Em Aveiro é sempre assim. Quando é coisa boa, não vem cá ninguém. Sendo borracheira, enche-se o teatro. Está certo. Estúpidos sempre”. [O Povo de Aveiro, 25.05.1930]


A influência exercida sobre a opinião pública era notória, apesar de poucos periódicos locais se dedicarem à crítica de espectáculos. A maior parte, quando muito, limitava-se a escrever umas pequenas linhas dando conta do acontecimento ou, por vezes, comentando algum fait-divers. Outras vezes, o seu parecer variava consoante tivesse recebido, ou não, convite para o mesmo.
Por volta de 1909, como revela Eugénio Pimentel, a secção teatral dos jornais não tem qualquer importância, sendo muitas das notícias previamente escritas pelos empregados dos empresários teatrais.

[...] Porque para quase todos os jornais a secção teatral não a menor importância. Encarregam dela muitas vezes criaturas estranhas à redacção, que trabalham de graça, em troca dos bilhetes de entrada, que no fim duma época representam uma verba importante em prejuízo da empresa. E esses sujeitos, sem responsabilidades e quase sempre sem competência de espécie alguma, escrevem ao sabor das suas conveniências. 
Se o autor, empresário, artistas ou, numa palavra, qualquer pessoa das muitas que num teatro estão intimamente ligadas à peça não é da sua simpatia, não há nada de mau que a peça não tenha, não há defeito que o critico lhe não aponte.
Mas se a empresa, autor, cenógrafo, artistas, etc., estão nas boas graças do pseudo-jornalista, ó vergonha!, chega-se ao ponto de nos próprios escritórios das empresas teatrais se redigirem, por empregados seus, as notícias que no dia seguinte os jornais dão, chamando a atenção do público e prodigalizando por conta própria os elogios mais pomposos tanto aos empresários como aos artistas, tanto aos autores como aos cenógrafos! [PIMENTEL, 1909: 126-127]


A opinião deste escritor é facilmente deduzida através de uma apreciação aos periódicos locais. O  Povo de Aveiro– ou O de Aveiro (durante o exílio a que foi obrigado[1]) – era um jornal muito satírico a tudo o que se fazia na sua terra, defendendo, apenas, os ideais  republicanos; não é, pois, de admirar que só aqui se leiam opiniões negativas aos amadores aveirenses. 
O Democrata, menos tendencioso e muito defensor dos conterrâneos, nem sempre assistia às peças das companhias visitantes .
O Campeão das Províncias e O Distrito de Aveiro são outros títulos que chegaram até nós mas pouco se referem a aspectos culturais da cidade, preferindo a política local e nacional. 
Apenas dois jornais se destacam de todos os outros: Beira-Mar e Litoral. O primeiro, durante várias edições, incluiu crítica a espectáculos, pela pena de um ilustre aveirense: Querubim Vale Guimarães – mais tarde um advogado famoso da cidade – que, ao longo de grandes colunas, discorria sobre o que acontecia não só no burgo, como também em Lisboa. O segundo jornal, começou a publicar-se em 1951 e, além do suplemento literário que esteve na origem do CETA, nunca ignorou o que se passava no palco do Aveirense.
Pontualmente, alguns aveirenses ligados ao meio, também discorriam sobre os espectáculos a que assistiam, publicando as suas impressões quer nos jornais quer em revistas culturais. Nomes como o do Professor António José Tavares, Duarte Simão, Eduardo Cerqueira, entre outros, estão intimamente ligados à (pouca) crítica local que se fazia. 
Seja como for, e durante muitos anos, era através da imprensa que o público tomava conhecimento dos espectáculos. Os primeiros programas existentes no arquivo do Teatro Aveirense são posteriores à sua inauguração e, nem todos, foram arquivados. Por outro lado, no século XIX, muitas das notícias publicadas não eram certas, podendo ler-se, com alguma frequência, expressões como “amanhã cremos que haverá récita...[2]” ou “dizem-nos que haverá...[3]” e depois, nada mais dizem, ficando assim sem se saber se o espectáculo se concretizou. Outras vezes, o jornal começava, antecipadamente, a preparar  os espectadores para o que se andava a ensaiar ou para o que se poderia ver, brevemente. Quando se tratava de companhias não locais, recorria-se, algumas vezes, a citações dos jornais nacionais, que descreviam o modo como o espectáculo tinha decorrido noutras localidades. E estas opiniões eram de tal modo influentes que, muitas vezes, só após lerem a opinião da imprensa é que as damas se dignavam assistir ao espectáculo:

É também através da imprensa que nos chegam indicações acerca do estado do teatro em Portugal e das dificuldades por que passavam, muitas vezes, as companhias: 

Dissemos, no último artigo, da impressão de decadência e de inferioridade que nos deixou a audição das duas récitas [A pista A severa] dadas pela companhia D. Maria no teatro desta cidade.
Essa impressão, afinal, cremos ter sido a de toda a gente que assistiu aqueles dois espectáculos e outra coisa não foi que a constatação do que há muito se lia e ouvia sobre o verdadeiro desmazelo a que se consentiu que chegasse um teatro oficialmente instituído para educar e manter, em toda a sua pureza, as regras e normas da arte clássica de declamação.
            Assim como está, sem ordem, sem superioridade, sem grandeza, sem arte e sem artistas, uma perfeita manta de farrapos a desfazer-se, nem é um teatro de reformas, inovador e revolucionário, nem sequer satisfaz ao espírito da lei que o criou. [Beira-Mar, de 28.06.1909]

Se dúvidas ainda existissem para demonstrar o grau de decadência atingido pelo teatro português, as duas últimas récitas [O milagre de Fátima e Fim do mundo, de Sales Ribeiro] viriam extingui-las por completo a tal extremo de miséria as companhias chegaram por falta de elementos.
            A pouco e pouco, aquela plêiade de talentos que era de uso ver-se nos palcos, fazendo arte e empolgando as plateias, tem ido desaparecendo sem deixar substitutos [...] [de tal modo que] não há uma companhia em termos. [O Democrata, de 17.11.1928]


            Tiveram fraca concorrência as récitas da semana passada pela Companhia Palmira Bastos, não obstante as peças, principalmente O rosário, serem as melhores do seu reportório. Mas o que se lhe há-de fazer se a decadência do teatro português é uma coisa inevitável perante a divisão dos seus elementos de maior valor?
            Além de que a mocidade de hoje também a respeito de teatro não lhe puxa muito...
            foot-ball e o cinema é outra coisa... [O Democrata, de 12.01.1929]


            A companhia de revistas Eva Stachino deu, no fim da semana anterior, um espectáculo nesta cidade, não logrando encher a casa que apenas tinha três camarotes ocupados e pouco mais de metade da plateia. [...] o teatro agora é quase todo assim – sem arte, com muita pornografia e o máximo de nu. [O Democrata, de 30.01.1936]


Ao longo do século XX, o distrito de Aveiro dava uma grande importância à imprensa, de tal modo que, em 1933/34, este era o distrito com mais jornais publicados, atrás dos de Lisboa e do Porto. [AZEVEDO,  1999: 161-169]  Como vimos, a proximidade com o Porto também foi (bem) aproveitada, para publicidade, pelas diversas administrações do Aveirense, uma vez que, à falta de críticos locais de qualidade, a população servia-se das suas crónicas para saber de antemão o que esperar de determinados espectáculos (anexo III, fig. 36). 
Os periódicos traziam assim as boas e as más notícias, atraindo ou afastando o público do Aveirense, e alertando-o para o verdadeiro motivo da anulação de espectáculos. Era também a voz do povo anónimo, a voz dos que contestavam as decisões, nem sempre fáceis, das  diversas administrações, que, muitas vezes, nem se davam ao trabalho de refutar as notícias. Outras, recorriam aos tribunais.

Reúnem-se hoje em assembleia os accionistas  do Teatro Aveirense afim de pedirem à direcção estritas contas da sua administração viciosa e inqualificável. Que todos os sócios cumpram com os deveres da sua consciência, apoiando um voto de censura, que necessariamente há-de ser proposto por algum dos accionistas.
Quem procedeu com tão pouco tino e sensatez não pode por mais tempo permanecer á frente dos negócios d’uma sociedade.
Que se demitam francamente, é o único expediente que lhes resta. [O Povo de Aveiro, de 19.03.1882]




[1] Jornal sempre muito polémico, defensor acérrimo dos ideais republicanos e pouco empenhado nos assuntos regionais. Em 1894 é suspenso, após uma campanha contra a Câmara de Lisboa, reaparecendo 5 anos depois. O estilo não muda e, após 1910, o seu proprietário e principal redactor – António Homem Cristo – foi obrigado a exilar-se pelas forças políticas portuguesas, partindo para França onde, na companhia de seu filho – Homem Cristo Filho – publica O Povo no Exílio. Dois anos depois, e de regresso a Portugal, publica O de Aveiro. No ano seguinte regressa ao título primitivo.
[2] in, Campeão das Províncias, de 15.02.1879
[3] ibidem, de 13.09.1882

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